Maurício Adinolfi Textos



Pontos de tensão



Ordenar funções diversas no espaço passa necessariamente pela administração de pontos de tensão. Esta talvez seja a principal demanda da cidade e por esta razão encontramos pontos que comandam as funções do organismo urbano, ou seja, os centros nervosos, como os edifícios e os complexos habitacionais.

Maurício Adinolfi inicia aqui a primeira fase do seu projeto de intervenção no Copan: um ponto de tensão em meio a um dos centros nervosos da cidade de São Paulo. Neste momento, ele se defronta com uma dupla tarefa: a de experimentar a ativação de alguns dos seus focos nevrálgicos, ao mesmo tempo em que flexiona o exercício sobre o plano bidimensional - a superfície.

Como os nervos - estruturas que produzem estiramentos e flexões na condução/expressão de impulsos diversos -, a superfície pode ser entendida como um ponto de tensão em seus trabalhos. Ela é constantemente estirada, seja no exercício de expansão-contenção na pintura, seja no confronto de descontinuidades das colagens ou mesmo na articulação de cortes de madeira com desenho e cor nos retábulos.

Por outro lado, o estiramento da superfície torna-se um acidente no seu processo produtivo e reflexivo: alteração e flexão da extensão bidimensional. Assim, a ocupação de um espaço previamente articulado, se desenvolve a partir do entendimento da superfície como ponto de tensão e acidente, flexionando o potencial de sua tridimensionalidade curva para receber extratos bidimensionais, capazes de ativar relações diferenciadas com a percepção e com o espaço.



Superfície - Acidente

Entre as pinturas e os retábulos apresentados por Maurício Adinolfi na galeria e no foyer do edifício, a superfície transmite a pulsação da força e da reflexão construtiva. Suas pinturas trabalham um diálogo de planos a partir da equivalência destes na superfície, administrando os conflitos na interação de massas cromáticas diferentes, com intensidades diversas de movimento e coagulação. A aplicação alargada da tinta e o empaste do pigmento revelam a pulsação de tensões latentes no processo construtivo da superfície.

Adinolfi utiliza-se de expansão e contenção da força para fazer da superfície pictórica o que ele nomeia de “campo” e “contra campo”: o embate entre corpo e espaço - suscitando a discussão histórica de figura e fundo -, em que o corpo exerce uma força de alargamento de sua superfície, de movimento, ao passo que o espaço responde com igual intensidade flexionando contra essa expansão. A vibração da cor ou o efeito do gesto cria o atrito constante entre a figura apresentada (o corpo) e a extensão formada (o espaço).

De acordo com o artista, a “pintura é investigação” e “sustenta a estrutura interna” da instalação. Sobre o que ele chama de “tela suja”, as cores são “promíscuas”. A partir do ataque feito à tela, as cores se sobrepõem, se misturam, se confundem, em busca da “densidade matérica”. Sua “tela suja” é resultado de um acidente cromático que traz consigo a reflexão sobre o acidente em um plano existencial: quando a razão se suja na tensão com o instinto, ou a sanidade se corrompe ao defrontar a loucura. De todo modo, sua pintura permite observar distensões reflexivas, em que os diálogos da matéria na superfície, os confrontos do pincel e da espátula com a tinta e o plano, se alinham a um pensamento a respeito da natureza humana, recompondo seus conflitos, seus pontos de tensão, seus caminhos acidentais.

Os seus retábulos são painéis de madeira que se articulam a partir de uma grade de encaixes, conexões materiais e formais. Construído por meio da montagem de superfícies descontínuas , o artista cria estruturas com a ordenação dos fragmentos articulados de madeira.

Na disposição de lidar com uma matéria crua, áspera e de corte variável, o artista conserva traços rústicos da madeira, seja nas marcas da apropriação seja na exibição nua da montagem. Por outro lado, no seu empenho de arquitetar o material, transparece o embate entre a disposição construtiva ao buscar a ossatura dos encaixes e a consciência do acidente; da força íngreme encontrada nos dejetos dos meios urbanos. As madeiras por vezes são residuais, refugos, vestígios da ruína, com as quais cria estruturas, ordenando a matéria em um jogo de contrastes. A construção é um modo de arquitetar a ruína neste caso. A cidade é um campo em constante desconstrução, reformas, demolições, deixando o rastro nas sobras de madeira e nos cortes acidentais sobre a superfície de seus trabalhos.

Esses retábulos apresentam-se também como artefatos de uma decomposição, em que são traçados desenhos sem lápis, fraturando a unidade da superfície e apresentando personagens sem batismo ou elevação mística, contrariando o retábulo religioso. Ao promiscuir a peça de altar e devoção, os seus desenhos são composições feitas a partir do exercício de controle que a mão exerce sobre a máquina (a furadeira) no seu impulso elétrico, em que a força pode ser compreendida como o direcionamento do movimento: posicionamento, disciplina, compressão, ordenação, expansão.



Superfície - Transposição

Maurício Adinolfi enfrenta o caráter ativo da superfície não apenas como uma situação ótica, mas como um órgão pulsante no espaço, principalmente quando este se indaga a respeito das possibilidades de diálogo com o meio arquitetônico.

Uma das inquietações lançadas pelo artista aponta para a expansão da pintura. Digo inquietação, pois a sua questão não reside no deslocamento da cor para o espaço tridimensional, mas sim na possibilidade da superfície se tornar estrutura, ou seja, fazer com que ela adquira uma dinâmica arquitetônica. Desse modo, podemos compreender sua intervenção na potência que o trabalho bidimensional, construído durante anos nas telas, papel e suportes de madeira, possui para se tornar estrutura.

Cabe ressaltar que transpor pode ser entendido como a ultrapassagem de determinada ordem. Nesse sentido, o artista tem pensado a pintura a partir da lógica da transposição: ultrapassando certos limites da pintura e invertendo sua ordem. Esse diálogo iniciou-se com o projeto Cores no Dique, realizado na cidade de Santos no ano de 2009. Nele, Adinolfi realizou a relação entre cor, superfície e estrutura a partir da reflexão sobre construções às margens do rio, ao mesmo tempo em que desenvolveu, com a colaboração de seus moradores, um projeto de estetização de uma paisagem marginal e empobrecida em sua condição material. Agora, com o presente projeto, mais uma etapa desta reflexão é realizada, compreendendo outros desafios a serem enfrentados.

Cada construção oferece possibilidades e desafios específicos, sendo que o artista precisa criar distensões para a sua prática a fim de realizar incursões efetivas no espaço trabalhado. As construções a beira-mar, montadas por chapas retangulares de madeira, agora dão lugar à ondulação de concreto idealizado por Niemeyer, do mesmo modo que as cores vibrantes são trocadas pela cor crua da madeira, sem tratamento pictórico posterior.

No interior da imagem da modernidade paulistana, Adinolfi acompanha de modo ritmado a curva do foyer com superfícies de madeira em tamanhos variados. O seu projeto procurou pensar a curva por meio da justaposição de superfícies descontínuas de madeira, cortadas em tamanhos variados, montadas em combinados com encaixes para serem instalados na grade, criando uma estrutura que, por sua vez, adere à construção e enfrenta os pontos de tensão decorrentes da ação.

Em 2008, Adinolfi desenvolveu uma instalação para programa Espaços Funarte de Artes Visuais. Neste seu primeiro trabalho de maiores proporções com a madeira, ele experimentou o risco de construir uma parede em diagonal na qual lidava com a instabilidade de seu convívio com o espaço de paredes verticais. Agora, o ponto de tensão se apresenta na curva e não na diagonal. Instalar os combinados de madeiras na grade do foyer se mostrou um difícil exercício de lidar com aderência de superfícies retilíneas em uma estrutura sinuosa. Fixar, encaixar e conter. Estes foram os desafios particulares com que o artista e seus ajudantes tiveram que administrar na instalação. A tensão estava presente na difícil aderência entre superfície retilínea e estrutura curva, no vento que enfrentava constantemente o equilíbrio das operações, no risco considerado dos trabalhos e da permanência da intervenção.

A estrutura projetada pelo artista procura pensar os mecanismos de tensão: regularidade e irregularidade, constante e variável, razão e instinto. Neste sentido se apresenta o aspecto acidental em suas instalações. Se compreendermos acidente como a variação de superfícies ou alteração de tonalidades, a curva é um acidente da linha. E é justamente essa flexão da linha estrutural no edifício que se tornou um foco reflexivo no trabalho de Maurício Adinolfi. A “cortina” de madeira instalada sobre a linha curva exige que a superfície se comporte como estrutura. Madeira que confronta o concreto, superfície que enfrenta a estrutura. O sentido da intervenção é o comportamento da tensão.


Naum Simão de Santana