Maurício Adinolfi Textos



Cores no dique e Paredes pintura



Esses dois projetos sobre os quais fui convidada a falar hoje: Paredes Pintura, do Jamac e Cores no Dique, de Maurício Adinolfi, colocam, para dizer sem rodeios, o dedo numa grande ferida. Uma ferida aberta, exposta cotidianamente a todos aqueles que trabalham no campo da arte: artistas, curadores, criticos de arte, arte educadores... Trata-se do afastamento da arte contemporânea do grande público ou, para dizer de outra forma, a arte contemporânea, embora tenha se insurgido contra muitos dos dogmas modernos, não rompeu com uma relação fundamental, estabelecida no modernismo avançado, de que a arte é algo para especialistas.

Ao tentar trazer para a periferia de São Paulo a experiência da arte, os dois projetos não só empenham-se em tentar levar a fruição da arte para a periferia, mas também a própria produção artística é deslocada para lá, fazendo com que os artistas se deparem com um sem número de problemas de dificil solução. Problemas que muitas vezes não são imediatamente reconhecidos como próprios ao campo de reflexões da arte. Problemas que dificilmente são vistos como estéticos e são mais facilmente identificados como questões políticas.

Essa distinção entre os domínios de cada uma das disciplinas, a estética e política, no caso, questão cara ao modernismo, de raíz kantiana que visa estabelecer os limites e os contornos de cada campo, aponta para a definição daquilo que podemos entender e aceitar como trabalho de arte. Será a produção artística uma exceção a outras práticas sociais? Até que ponto a arte é a exceção? Até que ponto defender esse caráter excepcional da arte, da atividade artística, é útil, é desejável ou mesmo pertinente?

Permitam-me uma pequena digressão. Tenho ouvido com frequencia alguns artistas citarem de boca cheia, com se diz, uma frase de Godard, num de seus filmes mais recentes, traduzido para o português como “Nossa Música”. A frase diz o seguinte: "a cultura é a regra, a arte a exceção". Chama-me a atenção o fato desses artistas entenderem sua prática descolada do domínio da cultura. Entendo cultura aqui como algo em forte conexão com o mundo cotidiano, como o próprio aparecimento de uma sociedade, de uma civilização. Dizemos "a cultura Maia, a cultura guarani etc". Sabemos que esse domínio da cultura foi colonizado pela lógica da indústria cultural. Aqui também impera os interesses dos grandes capitais: da indústria fonográfica, dos meios de comunicação, as produções massificadas, um uso político opotunista da noção de cultura. "Valorizar a cultura nacional" virou um bordão amplamente utilizado em muitos textos de patrociandores de exposições de arte (bancos, grandes indústrias) que, utilizando da estratégia da renúncia fiscal, posam de “bons moços” preocupados em incentivar a cultura. O campo da cultura está, sem dúvida, rebaixado. Contudo, ainda me espanta como alguns artistas percebem e até reinvindicam que sua prática seja aceita e reconhecida como algo distante da cultura. Como a exceção à cultura, como se houvesse possibilidade da arte ser percebida sem a mediação (desatrosa, mediocre, revoltante, no estado atual em que se encontram as coisas) da cultura. Como se a arte fosse o domínio das questões puramente estéticas em que toda a sujeira da cultura pudesse desaparecer.

Esses dois projetos, no entanto, não recusam o terreno pantanoso e podre da cultura. Tampouco têm a posição oposta, tão ingênua e insustentável quanto a primeira a meu ver, de que a cultura popular é, por si só, um grnade valorque precisa ser preservada, mantida, incentivada. Não há espaço para deslumbramentos. Pelo menos menos dentro da maior favela de palafitas da América Latina, em Santos. Pelo menos não no Jardim Miriam um dos primeiros bairros a entrarem no programa do governo estadual "São Paulo pela vida" que visa reduzir o índice de homicídio em alguns bairros mais violentos da capital.

É justamente contra a a noção de que ao caráter ordinário do trabalho comum opõe-se o caráter excepcional do trabalho de arte que esses dois projetos se dirigem. Esses dois projetos buscam construir uma zona de intersecção entre os dois mundos, não se conformando nem reinvindicando a pretensa excepcionalidade da arte. Nesse sentido, qualquer ação, qualquer movimentos a ser realizado nessas duas comunidades tem que partir de coisas bastante claras. E aqui eu falo como alguém que já acompanhou muito trabalho na periferia, que já participou de muitas ocupações de terrenos abandonados – e que portanto não cumprem a função social da terra assegurada constitucionalmente – por movimentos sociais organizados, que já esteve na mesma situação de chegar de fora num lugar novo.

- é necessário escutar, acolher e entender as preocupações da população local
- é necessário entender os valores que estão em jogo
- é necessário criar regras de participação naquilo que você vem propor: qual o critério para que a sua casa tenha as paredes pintadas? Trata-se de um critério de necessidade? De disponibilidade? De localização?
- é necessario lidar com a falta de estrutura geral, em que mesmo as pequenas coisas não estão garantidas.
- é necessário negociar com os poderes locais já estabelecidos que vão desde o tráfico de drogas, até a polícia e os diligentes locais.

E a lista segue. Como se vê, não são problemas estéticos.

Gostaria de tentar discutir com mais vagar qual é o estatuto da pintura, tal como nós do mundo da arte entendemos a pintura, nesses dois projetos. Mas é algo que não teremos tempo de fazer aqui. Precisaríamos, talvez, voltar aos penetráveis de Oitica para tentar situar as fachadas do dique. Mas eu tenho a impressão de que não estamos falando numa linha de continuidade entre essas duas coisas. Da época em que Oiticica estava produzindo ao tempo presente, nesse intervalo de algumas décadas, muitas coisas mudaram e o horizonte da utopia, a possibilidade da arte com algo realmente libertário foi reduzida drasticamente.

O projeto Parede pinturas tem uma relação com a pintura bastante diferente que a estabelecida pelo Cores no dique. Há uma produção iconográfica, na esteira do grafite urbano, da serigrafia, da estamparia. São coisas distintas e que valem a pena serem analisadas. Seria preciso também confrontar essas duas práticas, sem contemporizar, com projetos como o do arquiteto Rui Ohtake em grande favelas como Heliópolis. Trata-se da mesma coisa? Onde poderíamos localizar a diferença?

De qualquer forma, arrisco-me a dizer que esses dois projetos pouco tem a ver com a noção de pintura que carregamos, que aprendemos na escola. Talvez porque nossa noção de pintura seja restrita demais para abarcar essas duas experiências. Talvez porque a nossa noção de pintura seja complexa demais para ser absorvida sem mediações nesses locais em que os projetos se instalam. Mas talvez porque, e eu me inclino a achar que é disso que se trata, que a pintura cumpre papel quase secundário nesses dois projetos. Mas e não é aí, onde resisdiria a qualidade artística deles?

Termino essa breve colocação com um trecho de uma entrevista de Ranciere que pode nos dar uma pista nesse sentido, pista que sem dúvida merece ser seguida com mais cuidado, com mais mediações do que serei capaz de fazer agora.

"A arte", diz Ranciere, "antecipa o fim - a supressão das oposições - que o trabalho ainda não está em condições de conquistar por e para si mesmo". Ou seja, o trabalho como atividade social necessária, não permite muitas vezes que o trabalhador se identifique com aquilo que produz. Em termos marxistas é essa oposição que carateriza o conceito geral de alienação presente em todas as sociedades capitalistas. A divisão social do trabalho, sua compartimentação, não permite aos envolvidos que se estabeleça entre ele e o produto final uma relação identitária. E Ranciére prossegue "mas (a arte) o faz na medida em que é produção, identidade de um processo de efetuação material de uma apresentação a si do sentido da comunidade. A produção se afirma como o princípio de uma nova partilha do sensível, na medida em que une num mesmo conceito os termos tradicionalmente opostos da atividade fabricante e da visibilidade (...) produzir une ao ato de fabricar o de tornar visível, define uma nova relação entre o fazer e o ver. A arte antecipa o trabalho porque ela realiza o princípio dele: a transformação da matéria sensível em apresentação a si da comunidade".

Assim, a pintura aqui é um meio de produzir. De resgatar a possibilidade de, num só ato, fabricar e dar a ver. Retira os sujeitos nelas envolvidos da condição de alienação e os estabelece novamente como sujeitos. O benefício, se é que podemos chamar dessa forma, não pode ser medido apenas em termos de eficiência política, social ou econômica. Tampouco estamos dizendo que o embelezamento das favelas produz um ambiente mais “agradável”, mais colorido naquele cotidiano duro, poluido e pobre. O núcleo consistente desses dois projetos reside justamente nesse processo por meio do qual os agentes tornam-se conscientes e responsáveis por suas próprias representações.


Thais Rivitti 2009/2010