Maurício Adinolfi Textos



´´SOBRE MAR , MADEIRA, MADEIRAMAR, ESBOÇO SOBRE TELAS´´



As grandes cidades podem ser definidas por tropos de linguagem : metafóricas ou metonímicas. Segundo Aristóteles , em sua ´´Poética´´ , ´´ a metáfora consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou de espécie para o gênero, ou da espécie de uma espécie da outra, ou por analogia´´.

Assim o Rio de Janeiro ou Santos que mimetizam, são analogicamente moldadas pela relação com grande elemento natural : Oceano-Mar. Já a metonímia responde a uma lógica de ´´parte pela parte´´, principalmente quando sugere a causa pelo efeito, o conteúdo pelo continente, o objeto pelo material de que é feito, quando figuramos algo por contigüidade ‘a um signo que tudo nele conduz e desdobra resignificando. Conheço poucas megalópole tão ´´ metonímicas´´ quanto Sampa : cinzenta, selva de concreto, veias urbanas sem topografia natural que a referencie : auto-gestada pela que se inventa e que reproduzida nos cadinhos nano-semânticos que a representam em seus infindamente polissêmicos construções hauridas do seu magma inorgânico constructo até o permeabilíssimo grau de experimentação de sua existência perpassando o fluído loucamente inconstante. Sem linha de horizonte definida, mortos seus veios líquidos sem refletir-se em nada além do gigantismo espelhado , - é a única grande metrópole mundial sem condução geológica que a conduza ou se interponha assente inconsútil. O declive da Consolação já não perceptível dispunha-se em charco, lamaçal, espraindo-se por madeirames que sustinham as veredas que sustinham a primeva capelinha que sustentava-se pelo apoucado povoado de devotos desse paradeiro remoto que servia de passagem aos campos da Marquesa, do General Arouche e Dona Verediana. Campos de chá, prados de Pinheiros e a elevação tímida de Higienópolis. Ainda hoje faz-se oásis com ares de província acanhada com badalo de coreto sacralizando o gozozo profano profundo do entorno.

Descendo o insosso caminho que nada oferece além da paz de cemitério, impacta ao desavisado o feixo que como um ´´Aleph´´ verticalizado esquadrinha-se pela urgência afrontosa do Itália, o Hilton e o sobranceiro Copan, mítico , farol laico a essa civilização fractada e convergente denominada São Paulo, que honra o santo que a denomina: o evangelista dizia : ´´a criação geme com dores de parto´´.

Ela , macunaímica, é como o capitalismo : ´´destruição criativa´´ no tratado de Schumpeter . Igreja e o egpitico , babélico prédio de Oscar Niemeyer , tem só meio século a menos que a igrejinha. São Paulo é milenar sendo só presentificada : infinitiza-se pela escala de seu descalabro, apenas deixa maturando o que Drummond dizia na ´´Máquina do Mundo ´´ : Sampa tem estrutura duma carreira de fótons que se apóiam num átimo no ´´sono rancoroso dos minérios´´. A arquitetura não assoberba, é ela em sua bruteza que amacia a absurdez do homem sonâmbulo pela noite interrrompida do Tempo. O Copan contêm Sampa: é seu acelerador de partículas: simula em sinédoque rumores, partida e surgimentos , o espreitar do espaço sombreando onduloso a impossibilidade do Devir ser retido na provisoriedade de nosso precário questionamento. O Copan é o grande monte, Baal, o ponto de inferência e interrogante que aponta ao nosso destino bussolar algum nexo de caminhamento. ´´Na Arte só existe uma coisa válida, aquela que não se pode explicar.´´ - Diz mestre Braque, nessa tentativa de tatear encontrando mais uma grota depois de ter vencido precipícios que faço o ´´link ´´ entre Sampa e o Copan, apartir de um artista que nele vive e o usa como suporte-totêmico de suas experimentações e grafismos que remetem ao urbano refazendo o mítico perdido ou esvaído. A mostra ´´Mar, Madeira e outros animais´´ de Maurício Adinolfi remeteu ao crítico Frederic Rossif sobre o mesmo Braque: ´´Uma pedra, o comove tanto quanto um rosto. Ele tem um gosto muito pronunciado pela matéria. Introduz-nos nos mares contidos em cada pedra ou madeirame / usa materiais como areia em seus quadros / serra de lenha ainda viva e limanha de ferro. Nele é cor dependente da matéria. ´´

Já tinha escrito sobre Adinolfi sobre ´´Cores no Dique´´: corporalidade , mais ! fisicalidade que ele estabelece e propõem com próprio território onde instala um imaginário sobressalente e intimidade com matéria-prima: ela mesma metalinguagem ulterior das obras: folhas de madeirite, ´´trens´´ descartados pelo mercado e refeitos para Arte, além do telurismo incorporado ‘a uma comunidade no banhado ou uma cunha iluminada no mais emblemático ´´corpus vivendi´´ de Sampa. O hibridismo dum artista-filósofo que tem como matrizes o Oceano-Mar e a percepção de dissolvência humana na megalópole elaboram um ´´mix´´ raro que reintegra duas atmosferas apartadas apenas por 80 quilômetros pela grande muralha. É artista as sutileza neural, mas da ´´mao-na-massa´´, mesmo telurismo de Pablo Ruiz unindo o vórtice entre Málaga, a ancestralidade cartaginesa, as máscaras africanas e os atavios marítimos genoveses que redundaram em Picasso. Sua telas remetem além da ´´veneziana pública´´ por entranhas no aterraçado do Copan, aos monos que refletem toda tentativa ainda cuneiforme na mente do artista de lançar-se ao compreeendimento aproximadamente totalizante: assim Picasso com ´´Família do acrobata com macaco´´ de Picasso e o conto de Kafka : ´´ Um chipanzé na Academia´´ . A tríade de instalações mais pinturas de Maurício Adinolfi no Copan, exigiram releitura do mestre Ernst Fischer , no clássico ´´A necessidade da Arte´´.

´´A desconfiança do artista acerca de tudo o que é fácil, apuradinho e agradável impele-o para a austeridade e para a dureza, para um arcaísmo que recusa lisonjear os sentidos (...) a recusa de superfície brilhantes, o desejo de colher a estrutura das coisas, a sua permanência e não o momento passageiro. A concentração formal torna-se um fim; a obra do artista tenta comove ´´diretamente´´ tal como a música ou a poesia, menos pelo tema do que pela forma.´´ O mesmo espírito que se sentiu impelido a cromatizar habitações nos manguezais santenses, viu-se argüindo no cerne vibrátil de Sampa a conurbação adensada e a convivência fugidia : como diz Alfredo Bosi de Volpi: ´´Por que separar forma abstrata e acontecimento vivido? ´´ O cortinado de madeirame , as ripas em soltura, as telas com monos em riste e risco, foram saindo da concreção em minha visita solitária pelos intestinos da hidra para já ´´maturados´´ de dias de apropiação pública e o limar volúvel do Tempo , toldarem-se e formarem em minha retinas nunca cansadas num ´´corpus mutantis´´ que carreguei num comprometimento ´´sui-generis´´ : quando volto-me e noto que não são as colunas de Lot salinizadas: a instalação me redimiram de impasses geográficos que atormentavam minha sentimentalidade: afinal onde Sampa e Mar: por quê retinir no cérebro essa dicotomias se elementos hercúleos podem me fazer forte carregando um Atlas mais potente de sensorialidades sem exclusões empobrecedoras. ´´Onde o mundo interior e o exterior se tocam , aí se encontra o centro da Alma´´

Essa máxima de Novalis fala de Adinolfi e seu crescendo em tela ou arte que prefiro chamar de ´´interativa´´ além de tão somente pública: ele não é catalogável nesse ´´tão somente´´ que doutra sorte seria vicioso.... Ali vertido em anjo catapultado serra acima alinhavei essa clivagem, influxo : rescendia a maresia o centrão plúmbeo de São Paulo. Sem grandiloqüência, o artista partejou-me epifania: tocou-me, esta tencionada a razão da obra pela peculiaridade não deliberada, mas movida num interpretante que move-se ´´mardeirando-se´´ num chão de ferro inconcluso. O Copan em minha vida pessoal traz a lembrança meu conterrâneo Plínio Marcos e o escritor João Silvério Trevisan, que o imortalizou num conto exemplar. Já cerca vinte anos de estreitamento e fui verificando ser ele mesmo o grande laboratório para aquilo que em 2002 , a curadora francesa Catherine David chamou de ´´mapeamento de poéticas contemporâneas´´: poética do ajanelar-se , do avizinhamento como primeiros passos para rastreamento da produção cultural da cidade . Catherine David, foi a primeira mulher curadora da ´´ Documenta X ´´: mais importante mostra de artes plásticas do mundo, e nos fala da importância de morar ! ter aproximação sanguínea com objeto de experimentação: e qual estamento arquitetônico propiciaria essa visão de Sampa? A locação num ap. no Copan : ´´O Copan , por sua situação complexa e localização privilegiada , exige uma pluralidade de ações e pesquisas.´´ Aquela movimentação toda do fim dos anos 80 que vi em Barcelona e Paris, os denominados ´´squats´´ : coletivos de artistas que ocupam edifícios abandonados , seriam redifinidos em bases burocráticas , sem ´´espontaneísmo´´ que supera qualquer ´´porraloquice´´ dos já batidos ´´squats´´. Tanto as ocupações ´´squats´´, quanto importante ´´residência´´ de Chaterine David e o filósofo Peter Pelbart, perdem de longe para ´´visceralidade´´ da permanência de Adinolfi e criação dentro e apartir dessa mesma permanência cuidosamente polida , no calor da ceifa e azáfama quotidiana do segador ou semeador de ´´perceptos perpassantes ´´ de seu trajeto e traçado. Em ´´Mar, Madeira´´ existe o que Hegel dizia ser a ´´verídica totalidade´´ do seu conteúdo , o ´individual natural imediato e o individual espiritual ´ na subjetivando-se nessa residência na ´´unidade negativa´´ imbricando-se . Segue Hegel adequadíssimo ao ´´opus- Copan´´ de Adinolfi: ´´Graças a um autêntico o substancial e que a existência limitada e mudável adquire, por sua vez, autonomia e substancialidade , e deste modo a precisão , a profundidade e um conteúdo rigorosamente definido e substancial acham-se simultaneamente realizados, o que dá ‘a existência a possibilidade de se manifestar, através do seu conteúdo limitado, como universal, e ao mesmo tempo, como uma alma que se conserva o ´´quanto a si´´. Substancialidade sem precisão: esse êxito do ´´mardeirame´´ que nos sustêm ali não atônitos , mas achegando-se ao encantamento que não se vertiginiza pela verticalidade: um ´´aleph´´ contendo como bonecas russas a edificação e essa como ´´tubo-de-ensaio´´ a ´´Sampauleira´´ de todo dia e gente. As ripas recolhidas como num ´´lego-logos´´ aparentemente arbitrário nos lados do centro velho ou Santa Cecília, não criaram ´´solução de continuidade´´ estanque´´ : há visível sobreposição, mas sem acanhamento ‘a frontaria de entrada original do edifício: o esquadrinhamento contraria e mais a frente na perspectiva dum ângulo insólito reverbera a construção e a expressão de efeito único : ´´ o que nas oficinas se elabora , / o que pensado foi e logo atinge / distância superior ao pensamento (...) tuso se apresentou nesse relance´´ - assim Drummond de ´´A máquina do mundo´´ cabe na máquina de procedimentos artísticos raros de Maurício Adinolfi. E nele , essa elaboração com o táctil do artesão com as sinapses nervosas do pensador respondem ‘a essa necessidade ´´rilkeana´´ de viver artisticamente como sugere forte o dizer de Kandinsky: ´´Todos os procedimentos são sagrados desde que satisfaçam a uma necesside interior´´. E como essa necessidade é eivada de força, potência e consistência na transposição de objetos soltos e salteados para o mural que se afixava nessa Chartres laica : o Copan pelo intento, lucidamente metamofoseado pelo artista-morador. Para ilustrar ainda mais o efeito alegórico da instalação recorro ‘as elocubrações de Le Corbusier até a cabana de madeira elaborada por Gropius, pai da Bauhaus: habitabilidade, ´´protegimento´´, todos esses analisados pelo teórico da arquitetura, Joseph Rykwert em seu enriquecedor ´´A Casa de Adão no Paraíso´´. Nos falando da ´´casa primordial´´, ele nos traz a função seminal da moradia , vista por Adinolfi em seu intróito : ´´edifício ideal que existiu antes dos tempos, quando o homem sentia-se inteiro em sua casa, e sua casa era tão justa quanto a própria natureza´´. Esse molde introduzido no projeto de Niemeyer é também reflexão mesma sobre ´´convivenciabilidade´´ heterológica e a ética do abrigo compartilhado: a Arte pensa o cotidiano aprofundante.

A imagem nunca é completa seja de quem avista ou se debruça sobre o alhambrado escorrente : ´´Mar, Madeira´´ não é peremptório como a prosa por não ser afirmativo, mas evocatório feito a poética do espaço fractado, ainda que de opacidade afixada, não determinativa. É o cruzamento do ´´ethos´´ e ´´habitus´´ encilhados pelo ´´homo faber´´ que translança a marinidade ao púlpito , o corrosivo ao pétreo. Tensionamento, ´´mapas alterados´´ como vi na ´´Bienal de Curitiba´´, onde o trabalho do artista japonês radicado em Berlim, Yukihiro Taguchi é um dos referentes que aproximam-me desse ´´space invaders´´ de Maurício Adinolfi nesse Copan ´´onirissisado´´ que mora por dentro do olhar desse coração atlântico . Num brilhante ensaio de Guilherme Bueno sobre Milton Machado ele reproduz palavra de Diderot sobre o homem em sua passagem observante para a figura do artista: ´´Eu assevero que um ser que existe em qualquer parte e que não corresponde a nenhum ponto do espaço; um ser que não tem extensão e que ocupa a extensão ; que está absolutamente inteiro em cada parte dessa extensão ; que difere essencialmente da matéria e que está unido a ela; que a segue e move sem se mover; que age sobre ele e dela sofre todas as vicissitudes; um ser do qual eu não tenho a menor idéia; um ser de uma natureza tão contraditória é difícil de admitir.´´ Que escala quis o artista afrontar? A do artista maior que o peso da demanda do mundo: o excesso alí no pórtico , na arcada que assim explica Bachelard: ´´As vezes a imagem é muito discreta , sensível apenas, mas age. Ela diz do isolamento do ser debruçado sobre si mesmo (..) a imagem ganha sua força por efeito de um isoformismos : em seus mil alvéolos , o espaço retém o tempo comprimido ....´´ Essa suspensão de quem ´´lê uma casa´´ , ´´lê um quarto´´, agora lê a suspensão do Tempo em sua verticalidade vocativamente literal . ´´Tal ca chama o homem a um heroísmo do cosmos. É um instrumento que serve para enfrentar o cosmo.´´ O Copan é aí : aquele não-eu, Eu: o que corporifica para nós todos a interrogação erigida. ´´A miniatura é um exercício de frescor metafísico ´´.
A madeira em sua porosidade de sino-paciência , os qaudros de símios cambiantes, essas carrancas em goiva pedem Rilke: ´´O mundo é grande, mas em nós ele é profundo como o mar´´ .. Se alguma parte de Sampa senti familiaridade com o profundo foi na visitação ao ´set´ montado por Adinolfi em ´´Sobre Mar, madeira...´´ Liquefez ? nada ! tornou-se contrafacção do meu intento de perturbar a espacialidade que está na base dos meus temores da tal ´´compreenssibilidade´´. Salve o mar que voga em naus paulicéias....´´


FLÁVIO VIEGAS AMOREIRA
ESCRITOR, CRÍTICO LITERÁRIO E JORNALISTA.