Maurício Adinolfi Textos



calado do cais – minúsculas e maiúsculas. pessoas e coisas.



enquanto estiveram enterrados pela metade na praia do gonzaga, em santos, as embarcações de calado do cais eram corpos com vísceras aparentes. instalados de modo a ecoar a mudez da comunidade a que pertencem, sua presença dava a ver o agigantado sistema que move a cidade em direção a sua notória insustentabilidade. furados, em terra firme, eram antinavegantes e um contramonumento com os dias contados. resguardado seu atual estatuto de imagem – passadas as semanas em que impuseram sua presença à frente da fileira de edifícios situados à beira-mar –, reproduz a anatomia da saudade e da espera. conta com sua presença no tempo como garantia de sobrevivência. entregue à nostalgia e devedor de nomes próprios, calado do cais opera no lugar da imprecisão, enquanto reforça uma particular estranheza: nascem, foram transplantados ou estão afundando em areia movediça? ao enterrá-los, faz surgir enraizamentos que desmerecem dicotomias. estão para além do dentro e fora, do continente e conteúdo, do nascer e morrer. emudecidos, usurpados e inúteis, não sabem o que esperar. nem em que mar navegar. em chão movediço, seus corpos convivem com a infertilidade imposta. à beira-mar, funcionam como objetos expurgados do oceano. ou como a escória da sociedade progressista, pouco habituada à partilha. morreram antes da hora. morte induzida pela história carcomida, perfurada, estanque. devem à ignorância consentida muitos de seus impasses. não tem jeito, calado do cais é injuriado e aclamado ao mesmo tempo. é imponente, mesmo sendo impotente.

aliás, em sua imponente verticalidade, os barcos travam conversa com os edifícios, de maneira a indicar o desmanche da paisagem e o particular modo com que as comunidades locais se tornaram subservientes às potências que chegam sem pedir licença. trata-se de uma narrativa criada para que esses objetos sejam o retrato daqueles que convivem com barcos sem sorte e, ainda assim, reajam incansavelmente ao sistema insustentável que inventa uma sorte de progresso, buscando avançar em sua direção a passos largos. ainda que ligados a nomes próprios – célia e davinil, ex-proprietários dos barcos – são percebidos como alegorias anônimas de comunidades em vias de extinção, enquanto reúnem narrativas silenciadas. outro nome próprio é diana, de onde o calado do cais viu nascer afagos e injúrias: uma ilha-família, destituída de seu arquipélago. uma ilha isolada forçadamente, que já enterrava seus barcos como resultado da impotência reclamada e reanimada pelos fortes do sistema. no entanto, custe o que custar, o calado desse cais resiste. aliás, foi com essa força e com a articulação comunitária que maurício adinolfi o projetou. antes de consentir, calado do cais trata da urgência relativa à construção de monumentos que resistam ao falso sistema progressista. daí promover narrativas que apelam às minúsculas. não por retórica ou predileção, mas pela possibilidade de confrontá-las com os maiúsculos símbolos do poder que desapropriam áreas, entregues ao desenvolvimentismo insustentável. vale reforçar: diante da verticalidade imponente que redesenha a imagem da cidade, o enterro ou aterro dos barcos convoca outra modalidade de navegação e embate com o iminente estado de extinção. trata-se de uma espécie de microrrevolução subterrânea. é que calado do cais atua em sistema rizomático: espalha raízes de modo a desestruturar a superfície, ao mesmo tempo em que evoca um tipo de naufrágio telúrico, cuja instalação funciona como se desse a ver um trabalhoso improviso, que não compactua com falta de planejamento. antes, é ativado quando o sistema planejado cai por terra. nesse sentido, perceber o horizonte redesenhado pelos buracos dos calados indica um modo singular de entrar em um barco furado. à norma do conforme, o artista propõe o disforme. monumentaliza aquilo prestes a se despedaçar, reforçando, assim, a ambiguidade própria à instalação: ao mesmo tempo em que indica o colapso de um sistema global gerado pela desmesura atingida e, notadamente, pelas perdas irreparáveis que promoveu, volta a circular a ideia de que todo homem é um barco, com a diferença de que, neste caso, é, também, um possível retrato da cidade. o que leva a pensar quanto a cidade de santos – percebida sob duas perspectivas aparentemente divergentes – é sujeito-mundo e mundo sujeitado.


Josué Mattos