Carne e Força
“...mas ressuscitaremos essa carne perdida”
Allen Ginsberg
A urgência da contemporaneidade minimizou em certos momentos o exercício
mais amplo da pintura ao negar-lhe a possibilidade de uma escrita existencial. A
preocupação em construir um organismo pulsante e quente, um artefato de carne viva a
partir da humanidade que lhe cerca, parece sucumbir sob a acusação de ser uma
atividade arcaica, como se não pertencesse ao tempo presente. Nesse sentido, sem
nenhum tipo de heroísmo, mas com determinação, a pintura de Maurício Adinolfi
procura desmistificar a tese da morte da pintura impondo a si mesmo a necessidade de
ressuscitar a sua “carne perdida”, ou seja, a intensidade que traz a carga dos pigmentos.
O trabalho orientado e refletido da figuração torna-se um aspecto central em
seus trabalhos. Ultrapassando a conotação mais simples de representação, a figuração
torna-se o encontro de forças na composição, a administração entre os planos e os
conflitos na interação de massas cromáticas diferentes. É a ação da força (o movimento)
na composição da carne (a superfície), através da orientação do fluxo de energia. A
pincelada larga e o empaste do pigmento revela a pulsação de tensões latentes na
formação dos corpos, transbordando sua epiderme mais rala em direção a uma notação
existencial sobre a materialidade da pintura.
Para explicar a relação entre expansão e contenção da força, o artista criou as
expressões “campo” e “contra campo”. É um modo de definir o embate entre corpo e
espaço, em que o corpo exerce uma força de alargamento de sua superfície, de
movimento, ao passo que o espaço responde com igual intensidade flexionando contra
essa expansão. O “campo” é formado pela figura ativada pelo instinto. O “contra
campo” é a força de contenção, o espaço que interage fisicamente com a figura. Em
certos momentos eles se fundem, em outros subiste uma silhueta divisória, porém o que
permanece no exercício de figuração é o atrito constante entre as duas instâncias.
A força como um conceito que traduz as interações entre os objetos, permite
explicar as deformações ou modificações do movimento da figura. Os corpos são
receptáculos de intensidade e a sua representação não pode existir a parir do olho
mimético, mas do olho pulsional. Nesse momento, a carne da pintura é ressuscitada
partindo do princípio de que a vibração da cor ou o efeito do gesto é mais do que um
limite formal ou uma solução técnica. Na verdade é um comentário poderoso sobre o
atrito constante entre corpo e espaço, instinto e razão, vivido por cada um de nós: a
força. Nessa aspiração, a densidade do discurso da pintura é recobrada, como também a
sua vocação “demasiada humana”.
Naum Simão de Santana
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