Maurício Adinolfi Textos



A condição pública das formas da Arte Pública atual.



Este texto tem origem na discussão proposta sobre a relação entre os trabalhos dos artistas Mônica Nador e Mauricio Adinolfi e os elementos da Arte Pública Atual que os envolve. Dentre as muitas faces apresentadas por suas produções artísticas, a localização determinada por espaços marginais ao circuito dos grandes centros urbanos e o vínculo estreito estabelecido com a afetividade do lugar da comunidade em que atuam, salta aos olhos como um caminho instigante de investigação. Observa-se na condição pública dos projetos implantados por eles nas últimas décadas uma qualidade interessante que foi a direção escolhida para o traçado desse texto.

A constante atualização dos códigos, estratégias e validações apresentadas pelo trabalho artístico contemporâneo das últimas quatro décadas nos permite perceber uma grande abertura para as ações e intervenções artísticas que demandam espaço, estrutura e tempo muito diversos das condições praticadas por seus primeiros experimentadores localizados ainda dentro das vanguardas artísticas da primeira metade do século XX.

Organizadas por um cenário tomado pela valorização do texto do artista, pela publicação sistematizada e circulação de idéias sobre o processo criativo e o sistema da arte, as ações e as intervenções artísticas contemporâneas avançam as proposições de interação pública e a construção de projetos artísticos realizados na forma extramuros com uma participação ampliada dos grupos sociais em eventos cada vez mais efêmeros que tem a paisagem e o convivo cotidiano como seu núcleo irradiador. Derivam, portanto das formulações teórico-práticas de importantes representantes como: Robert Smithson; Richard Serra; Daniel Buren; Allan Kaprow; Helio Oiticica; Artur Barrio; José Resende; dentre outros que, já no final da década de 1950, trabalham a partir dos valores da sensorialidade e espacialidade, da necessidade de se ressemantizar o objeto artístico tanto quanto consideram importante investigar o papel do artista no corpo da sociedade.

Cada um deles deixa um legado visual e textual que demonstra o caminho inicial de processos artísticos que movimentam a balança no sentido da presença e participação do público nos processos constitutivos do trabalho artístico.

Efêmero por constituição, o formato das ações e intervenções artísticas também é pautado, nesse primeiro momento, por um estatuto político, de fundo democratizante, atento a uma suposta acessibilidade pública da qual deveria ser dotada a arte contemporâneos interessada em discutir seu sistema com outro tipo de espectadores, encontrados então nos transeuntes urbanos, nas pessoas em circulação pelas ruas da cidade. Estes público e espaço tornam-se os eleitos em relação aquele mais antigo, formado por espectadores educados esteticamente pela organização das paredes brancas das salas de exposição e regras do mercado artístico conhecido.

Como nos alerta Canclini, essa passagem do mundo moderno para o contemporâneo implica num complexo jogo de autonomias e distanciamentos que nos apresentam o sentido renovado da expressão público para a arte e sociedade atuais. O autor percebe estabelecer-se no mundo Moderno uma qualidade de divergência promovida entre um suposto público assíduo e informado sobre o universo próprio da arte e a configuração de um outro visitante ocasional que não compartilha de seus códigos e reage de modo híbrido ao conjunto inovador que lhe apresentam como arte. A herança moderna da autonomia do objeto artístico promove a errância das esculturas públicas, os deslocamentos formais e simbólicos dos centros e das centralizações e torna tão amplo quanto disperso o público que passa a ter acesso a Arte.

Embrionárias das performances e instalações nascidas das vanguardas modernistas, as ações artísticas em espaços abertos e urbanos no mundo contemporâneo adotam uma direção ambientalizada por um espaço aberto e urbano policêntrico e de relações sociais esgarçadas. Nele, encontra tanto a massa informe, urbana, em fluxo constante, prontamente é eleita por oferecer ao artista atuante um desafio potencialmente instigante e mais acessível para a construção de seu trabalho, como também percebem nesse fluxo que o corpo fluido e desigual do tecido urbano dos grandes centros pode ser o lócus a melhor traduzir a posição do artista e a reinserção de seu trabalho nessa configuração de sociedade.

A manifestação da Arte Pública renova seus códigos entre a Modernidade e a Contemporaneidade, apesar de pertencer a esse mundo desde a Antiguidade. Constantemente ajustada, ao longo do século XX, propõe um papel ativo na reordenação das vertentes contemporâneas das formas de intervenção artística. É a manifestação da Arte Pública do século XX aquela que antecipa as ponderações necessárias que devem ser feitas sobre a limitação do termo Público que lhe empresta sentido diante do confronto com o espaço urbano atual.

O público e a configuração urbana dos grandes centros tornam-se, ao longo desse século, cada vez mais distintos e fracionados. Esse dado influencia diretamente a constituição da Arte Pública de tal forma que a sustentação dessas manifestações artísticas passa a se organizar por um grau determinado de consciência e localização, ou seja, funda-se no ínterim particularizado da paisagem e da estrutura dos grupos sociais e guetos que validam sua presença como pública dentro do sentido plural que o termo adota na espessura do meio urbano contemporâneo. É nesse contexto que o artista assume um papel propulsor de processos de requalificação estética e social do cotidiano e da paisagem daquela comunidade em que passa a intervir.

Sob contínua revisão, a Arte Pública nos comprova sua presença submetida à questão desse encontro público. Deve persistir ao encontro com o outro para então consolidar-se como arte e dessa maneira, em sua forma contemporânea, a Arte Pública evidencia uma constituição matizada por uma extensa lista de pontos críticos, revisitados constantemente por seus leitores e interlocutores mais inquisidores.

Como ação, a Arte Pública depende necessariamente da anuência daquele grupo determinado como seu público e que ao mesmo tempo é também reconhecido como co-signatário das proposições artísticas. Promove uma espécie de transformação do espectador ocasional identificado por Canclini em sujeito integrado à manifestação artística, papel superior ao do assíduo participante informado que permanece presente no circuito da Arte.

Assim, sua condição pública torna-se índice importante para o contexto mais amplo do trabalho artístico contemporâneo à medida que ativa processos de negociação, pertença, identidade, questionamento sobre a temporalidade das propostas efêmeras da arte atual. As manifestações de Arte Pública atual ampliam o espectro dos elementos exclusivamente artísticos que antes formulavam a individualidade criativa do artista conduzindo-o para uma vasta gama de valores que são ativados ao largo desse sistema, impulsionando-o para preocupações do campo sócio-cultural.

Na passagem para um campo ampliado identificamos a presença de outra de suas dinâmicas próprias: a Arte Pública atual expõe, muito rapidamente, a fragilidade de propostas artísticas oportunistas, histórica e oficialmente impostas ou artificiais à configuração mais recente da idéia de público.

O espaço público urbano que recebia, até o princípio do século XX, esculturas públicas acadêmicas, narrativas, centradas em representantes das castas sociais mais altas, historicizadas pelas vias oficiais, altera essa orientação para projetos que buscam visualizar a relação de pertença das pessoas com os lugares de convívio. No lugar de um busto em homenagem a um herói, imortalizado pelo bronze e pela perenidade da homenagem, as novas formas de ação no espaço público reordenam a configuração pública dos espaços de convivência demonstrando seus interesses de instauração e manutenção por propostas que estreitem a relação entre a vida e a simbologia cotidiana dos grupos sociais fixados naquele território. Evitar o discurso heróico torna-se, aliás, base para sua mudança comportamental. Assim, a percepção do artista interessado por essa vertente inicia-se pelo seu campo primeiro de atuação, a estética, mas precisa avançar mais profundamente para o campo da cultura e da sociedade sem os quais não estabelece sua própria identidade no campo artístico.

Dessa forma, reedita-se a noção de centralidade presente na primeira configuração da Arte Pública que ocupava a praça, uma vez que sua nova configuração reveste-se da idéia de acesso e de pertença ao centro da comunidade efetivamente alterada pela passagem do artista.

Outros pontos críticos dessa vertente apontam para a continuidade de sua apresentação e validação sócio-cultural como processo de embelezamento urbano. Ligado à apropriação do espaço urbano pela indústria do Turismo, parques escultóricos, monumentos, museus, grandes exposições itinerantes são incorporados às políticas públicas desenvolvidas, principalmente em meados da década de 1980, por sua característica de publicização. Diferentemente da Europa e dos Estados Unidos, as formas da Arte Pública brasileira não são necessariamente ancoradas por encomendas regulares do Estado e demandam outros olhares em sua análise.

A despeito da falta de encomendas sistematizadas por organismo público voltado para a Arte pública em nosso país, continuamente somos expostos a projetos de embelezamento urbano justificados pelo código da Arte Pública. A ausência de questionamento dos habitantes desses lugares, o baixo envolvimento comunitário na sua construção ou a aplicação direta de uma proposta de maquiagem do espaço urbano surgem como premissas que geram as principais suspeitas da validade de projetos de configuração pública. Nesses casos, a baixa qualidade técnica e estética das propostas, além de sua orientação voltada para uma mera ornamentação arquitetônica, constrói o que Richard Serra intitula ceticamente como Piazza Art ou interesse utilitário na escultura.

Das esculturas públicas de Richard Serra, obtemos outra fonte crítica importante: durante a elaboração de seu trabalho o artista dá evidente preferência por espaços urbanos problemáticos e que lhe parecem oferecer menor risco de cooptação ideológica , tal qual atesta em textos e entrevistas. A cooptação ideológica dos lugares é entendida por ele como um dos principais índices para as Piazza Art. Nesse sentido, aponta um caminho que sugere o questionamento sobre o interesse pelo rejeito, pelo periférico e marginal presentes de forma geral na Arte Pública atual.

Quais são os aspectos da autorização incumbida ao artista e presentes no contexto dos trabalhos da arte pública atual já que se baseiam na identidade e simbologias de determinado grupo? Porque a associação com grupos desfavorecidos sócio-culturalmente podem interessar à Arte Contemporânea? Como distinguir o oportuno do oportunista nesses projetos? Os críticos mais severos da Arte Pública atual não se demoram em apontar o que fica identificado como apropriação oportunista da pobreza e da doença por parte dos artistas envolvidos com essa vertente. A leitura que fazem vê nela uma forma assistencialista e desmerecedora de arte.

Conjugando com as idéias de Michel Bresson sobre a elasticidade desse campo artístico, chegamos a algumas medidas sobre esse ponto crítico levantado. O autor conclui que a maior parte da Arte Pública de hoje é formulada pelas práticas de ativismo e pelo interesse desses artistas em atuar a partir do código sempre inquisitivo da arte contemporânea, a partir do questionamento das camuflagens sociais e do próprio sistema artístico que, até muito pouco tempo, organizava-se exclusivamente por objetos da cultura erudita, protegidos pelas instituições museológicas e pelo mercado.

A escolha pelo contato direto com comunidades estigmatizadas revela uma postura crítica contra o sistema mercadológico e contra a subjetivação excessiva do processo criativo artístico, vista como elemento de desconexão entre arte e vida cotidiana. Essa postura, contudo não se pretende romantizada, não assume radicalismos que inviabilizam a manutenção conceitual e financeira dos projetos. Ocorre que seus artistas atuantes percebem alguma obsolescência nos formatos dos objetos artísticos tornados tradicionais pelo mercado ao que reagem com rejeição, pois preferem a busca de conectividade e pertença, seja de seu trabalho, seja de sua persona. Bresson os identifica como artistas ansiosos por construir vínculos não entre objetos e o eu privado, mas sim entre pessoas.

Patricia Phillips atenta para o que entende como um apelo instrumental dessa vertente ao invés de desvantagem: a condição marginal da Arte Pública atual é a condição que lhe permite atuar como questionadora das culturas locais institucionalizadas. Pautada pelo sentido público, essa forma de arte permite-se aprofundar em elementos híbridos como: a cidade, o espaço, os sistemas e as comunidades, tecer um comentário estético, participativo, colaborativo, que pode ser capaz de promover mudanças de paradigmas a partir de sua passagem. É dessa qualidade adversa de Arte Pública que vivem os artistas Mônica Nador e Mauricio Adinolfi: da necessidade de revisão constante para que se evite o conformismo e a cooptação dos projetos por fórmulas de embelezamento ou turismo oportunista.

Conscientes das formulações necessárias entre os elementos da arte e da cultura, suas formas de atuação em Arte Pública experimentam temporalidades, outras centralidades e graus de pertença que estabelecem vínculos entre pessoas. Enquanto Mônica Nador se muda para o Jardim Miriam, na periferia de São Paulo, e lá organiza o JAMAC – Jardim Miriam Arte Clube envolvendo aquela dentre outras comunidades na remodelação das fachadas das casas no projeto Parede Pintura que perdura por onze anos, Mauricio Adinolfi seleciona a paisagem das palafitas do Dique da cidade de Santos para promover sua alteração feita igualmente pelo envolvimento dos moradores. Ambos partem da subjetividade da pintura e da investigação de sua condição contemporânea. A hesitação que encontram no seu envolvimento com a Pintura foi o que lhes permitiu chegar às formulações da Arte Extramuros. Podemos dizer que suas pesquisas, como a quase totalidade dos artistas, nascem individualizadas para depois, progressivamente, tornarem-se mais que coletivas, são públicas.

A escolha feita por eles também recai sobre certo desconforto típico das posições fronteiriças e marginalizadas da Arte Pública atual. Contudo, como premeditado por Phillips, são fronteiras que permitem um ponto de vista que termina por alimentar o próprio trabalho.

As propostas de Nador e Adinolfi são exemplos pontuais bastante representativos para o estudo da Arte Pública atual no Brasil, pois guardam aspectos que ultrapassam a qualidade estética resultante de suas ações ajustando-se aos públicos com uma coerência difícil de ser conseguida. São esses públicos, tão bem identificados pelos artistas aqui citados, os próprios identificadores dos projetos por eles realizados.

Numa das muitas citações promovidas por Douglas Crimp em seu conhecido texto “O fim da Pintura”, Goethe nos é apresentado pela lembrança de como houve uma época em que, com poucas exceções, as obras de arte geralmente permaneciam no mesmo lugar para o qual foram feitas . Assim, nos alerta sobre a formação inicial dos grandes museus da era Moderna, em particular o Museu do Louvre. Pela conjunção própria da forma textual, em última instância também nos reportam esses autores, sobre as mutações articuladas pela noção da pertença e da especificidade de lugar, entre objetos, indivíduos e instituições ao longo da História da Arte.

Por esse prisma, o trabalho dos artistas Mônica Nador e Mauricio Adinolfi sugere uma revisão da pintura contemporânea que é conquistada por meio dos aspectos da pertença e da especificidade de lugar, constituintes da práxis da Arte Pública que acolhem como seu projeto principal.

Tais quais as citações de um texto suas ações extramuros, pinturas de fachadas residenciais elaboradas em variados lugares do planeta, parecem promover o retorno de algo retirado, ao mesmo tempo em que afirmam valores estéticos e culturais que precisam ser espalhados, construídos sob uma condição múltipla e coletiva para que possam obter seu melhor efeito.


Sylvia Furegatti - novembro, 2009
Artista Visual e Docente do Depto de Artes Plásticas da Unicamp.